Um blogue que permitirá, aos seus autores, navegar pelas letras contando algumas histórias.
E dedicado a quem ainda tem paciência para ler pessoas que gostam de andar por aí sem bússola.
Um blogue que permitirá, aos seus autores, navegar pelas letras contando algumas histórias.
E dedicado a quem ainda tem paciência para ler pessoas que gostam de andar por aí sem bússola.
Tinha que olhar outra vez. Não acreditava ainda no que estava a acontecer. A última lembrança que tinha era o vento forte a esmagar o peito e o grito desesperado de arrependimento. De repente, via-se a pairar sobre a água, mas não compreendia. Olhou em volta. Parecia uma barragem. Sim, conhecia este sítio. Este pequeno exercício de observação provocou uma catadupa de lembranças. As emoções faziam doer o peito. O início de tudo…
Na sala havia uma cacofonia e um silêncio absurdo. Duas televisões ligadas, em canais diferentes e em altos berros, e o pai sentado a ler o jornal. De vez em quando lá comentava a notícia, protestava, irritava-se ou ria-se da piada do cronista e queria partilhar o ponto de vista, mesmo que ela não tivesse vontade. Nunca perguntou à filha se era feliz ou se estava nervosa com o seu novo passo na vida. Nunca lhe passou a mão no cabelo, ou disse que estava bonita. Nunca lhe indicou as possibilidades da vida. Nunca. Apenas a ânsia de fazer notar algo que ele achou importante. Ele achou importante…
Faculdade, primeiro dia. Gostava de aprender. Sempre gostou. Abria-se um novo universo, completamente diferente dos anos escolares anteriores. Sentia-se adulta e rodeada de adultos. Havia excitação e nervosismo e medo.
- Olha, sabes onde fica a sala onze? – ouviu atrás de si enquanto espreitava o placar dos horários.
Ao virar-se, para responder, estacou, queria responder e não saía som nenhum, o coração quase saltava pela boca, de tanto bater. Não conseguia raciocinar, não conseguia ouvir, só conseguia olhar para a rapariga que se encontrava à sua frente. Um rapaz que estava ao lado prontificou-se logo a indicar-lhe o caminho e ela agradeceu-lhe com um sorriso. Ai, que sorriso! Ainda ficou assim longos segundos, parada, a ver o par a afastar-se.
- Eu também vou para sala onze - balbuciou por fim.
Ninguém ouviu, ela própria não se ouviu. Foi um reflexo. E, neste complexo estado de alma, com a cabeça a girar, ainda sem compreender muito bem o que acontecia, caminhou feito um autómato para a referida sala.
As semanas passaram e os laços de amizade com a sua nova amiga iam-se fortalecendo. Eram inseparáveis. Partilhavam as suas ideias, os seus conflitos, estudavam juntas, opinavam sobre os rapazes…Bom, nesta parte havia muitos constrangimentos, disfarçados a custo…Como dizer-lhe? Cada dia que passava com ela aumentava o desejo de a abraçar, beijar, tocar… Chegava a doer o peito e, muitas vezes, o seu sexo latejava ao mesmo ritmo que as suas desenfreadas batidas cardíacas… Como dizer-lhe?
O dia da pior notícia que poderia ouvir chegou. “Eu e o João começamos a namorar!” Quando tinha acontecido isso, que não tinha dado conta? O João? Esse mentecapto! Esse bruto! Só de imaginá-lo a beijá-la, sentia-se tonta, enojada, revoltada. Quando é que aquela criatura iria tratá-la com a doçura e o carinho que merecia? Não podia aceitar tal coisa… Tinha que contar-lhe… Dizer-lhe que a amava tanto que doía… Talvez também ela sentisse algo…
A mãe olhava a filha e sabia que ela não estava bem. Não conseguia chegar perto. Ela não deixava. Sofria por ela. Ultimamente estava ainda mais calada do que o costume. Não comia como devia. Fechava-se por longas horas no quarto. Por vezes ouvia-a chorar, queria entrar e abraçá-la e tirar-lhe o sofrimento, pedir-lhe que confiasse nela, que o que quer que fosse se resolveria. Porque tudo se resolve na vida.
O que é que vim fazer a este mundo? Que merda de vida! Quero morrer! Ninguém gosta de mim! Sou uma merda! Eram estes os pensamentos que passavam na sua cabeça ao olhar para a água, lá longe. Revivia também o olhar de medo da sua amiga/amada quando lhe confessara que a amava. Ela nunca mais lhe falou. Nunca mais a olhou. Agora, o desespero tomava conta dela. Olhou mais uma vez para baixo. Deu um grito e atirou-se.
Tudo isto foi revivido ali, pairando sobre a água, e percebeu que já não vivia.
"Mãe, desculpa! Tu tinhas razão, tudo se poderia resolver! Devia ter aceitado o teu colo! Devia ter confiado no teu amor incondicional! Como dói!" Começava a sentir-se perdida. E a melancolia apoderava-se da sua mente. “Falhei”, pensava, e julgou ver umas sombras a vir em sua direcção. Uma luz envolveu-a suavemente e ouviu uma voz na sua mente. Reconheceu-a imediatamente. “Agora vamos cuidar dessas feridas…Não te martirizes, haverá uma outra vez para tentares…”
Custou-me a levantar, ultimamente tem sido assim, a cama exerce sobre mim um poder magnético contra o qual não possuo forças para lutar. Como tal, e já depois de banho tomado, continuo a sentir-me cansada e meia anestesiada. Ouço lá em baixo, na cozinha, o frenesim matinal, os miúdos começam novas, mas mais do que antigas, discussões do dia, e ele já depois de muita paciência esgotada manda-os calar, talvez pela enésima vez, mas como a voz saiu mais pautada, e já com um toque de irritação, surtiu efeito. Sinto a porta da entrada bater e resta o silêncio outra vez.
O silêncio é o que mais tenho ouvido nestes últimos meses, nem sei precisar quantos ao certo. Perdi a conta. Sinto que já nem os números têm importância. Visto-me lentamente, como se o futuro não existisse e o passado fosse eterno.
Ando pela casa sem saber o que fazer, apesar de ver que falta, aqui e ali, uma mão que dê um jeito à desarrumação instalada. Mas em nada toco. Pairo sobre tudo como se nada existisse…
Ele é o primeiro a chegar a casa. Eu estou no escritório a ler um livro que pousa há uns tempos na secretária sem que alguém lhe dê destino. Sinto os seus passos cansados escadas acima, caminha até ao quarto e ouço o queixume da cama indicando que ele se deixou cair nela. Vou, furtiva, espreitar… o que vejo deixou-me em plena angústia! Uma lágrima corre-lhe desenfreada pelo seu rosto por barbear. Tenho vontade de o afagar, abraçar e dizer que eu estou ali. Pedir-lhe que me deixe enxugar as suas lágrimas. Mas fico queda a observá-lo, até que a porta da entrada se abre novamente para deixar entrar os dois meninos. Parece que hoje vieram juntos da escola!
Ele seca as lágrimas e desce até à sala para se juntar às conversas que entretanto surgem. As vozes parecem distantes apesar de estarem mesmo ali ao lado. Desço também as escadas e junto-me a eles. Ouço-os a rir. Ele também ri, de forma contida, um riso que fica unicamente nos seus lábios preso a algo. Novamente surge em mim a vontade de o abraçar, e novamente algo me impede de o fazer. Para o jantar temos as sobras de ontem e improvisa-se mais alguma coisa. Os meninos põem a mesa e cada um procura o lugar onde é costume sentar-se, eu procuro o meu que está vazio! Eles evitam olhar para o meu lugar! O que fiz eu para me ignorarem assim? Acham que mereço? Sei que não ando bem e não pareço a mesma, mas isso não é motivo para se vingarem assim!
Nada digo! Não me apetece falar, muito menos discutir! Saio a correr da sala e corro para o quarto atirando com a porta atrás de mim. E choro…
Não sei quanto tempo se passou! Até que ele entra, e se deita na cama… Com a cabeça junto à minha, dividindo à almofada comigo, ouço-o dizer num suspiro
- Sinto a tua falta…
E eu percebo. Só agora percebo que ele não me ouvirá dizer que estou ali! Sempre estarei ao sei lado!
Catarino Presente nem queria acreditar no que via. Era ela! Aquela com quem sempre sonhava havia dois anos! O que isso significava, nem ele entendia muito bem. E considerava-se ele especialista onírico! Mais grave ainda, ela sonhava com ele também! Começou a sentir um suor frio e uma ligeira indisposição, que lhe deixava as pernas bambas.
- Conte-me como são os seus sonhos - conseguiu proferir.
E Constantina descreveu como o via sempre a sorrir para ela enquanto brincava com duas crianças pequenas, e que davam longos passeios. E que se sentia muito feliz nesses sonhos e um carinho especial por ele.
Catarino sorriu porque sabia exactamente o que se passava. Era o destino que tinha batido à porta do seu consultório.
Pronto, marcada a consulta, por muita insistência dos pais, Constantina sentia um nervosismo crescente, à medida que a data se aproximava. Tinha até deixado de sonhar tanto, o que deixou os seus pais ainda mais apreensivos e a questionar-se se tinham tomado a opção certa.
No dia da famigerada, lá se arrastou Constantina, sem muita vontade, ao consultório do dr. Presente. E, quando o viu, ficou boquiaberta e disse com a voz a tremer:
- Eu já o conheço
- Pois, é natural, por vezes saiem fotos minhas em artigos de jornais. - respondeu Catarino, visivelmente perturbado com a aparição que tinha à sua frente.
- Não, - insistiu Constantina - é o senhor que me aparece nos sonhos!
Constantina vivia no mundo da lua, o que quer que isso queira dizer, já que nunca ninguém viveu na lua. Sonhava acordada, fantasiava constantemente. Era vê-la de olhar perdido, com ou sem livro no regaço, pelos cantos da casa e no jardim. Era como se não tivesse raízes, como se estivesse cá, mas sempre lá, noutra dimensão. Os seus pais, inicialmente, deram liberdade a estes devaneios, mas, com o passar do tempo, começaram a preocupar-se. Muito. É que Constantina não tinha amigos, não saía de casa, nunca a viram apaixonar-se, era um ser estranho.
- Temos que fazer alguma coisa, dizia a Mãe para o Pai. Acho que a devemos levar ao médico.
- Mas a que tipo de médico? Além disso, não quero que a minha filha seja dada como louca, porque não me parece que o seja. É apenas um pouco mais sonhadora do que o normal - respondeu o Pai.
Decidiram, contudo, procurar um especialista em psicologia onírica. E é aqui que entra em cena o Dr. Catarino Presente.
(continua)
*Qualquer semelhança com o Constantino, é pura coincidência...
Era uma vez um anão que teve três filhos: o Becas, o Bicas e o Bocas. Este último era tão pequeno, tão pequeno que casou e foi viver dentro de um sapato n.º 32. Bicas, o irmão do meio, assim conhecido por tirar as melhores bicas do país, morava em cima de uma máquina de café: um loft luxuoso com aquecimento central. Era solteiro e tinha já uma fortuna considerável. O pai anão estava sempre a perguntar-lhe quando casava, mas Bicas gostava da sua vida de bon vivant. O monstro das bolachas…
- Um momento!
- Sim?
- Queres explicar-me para que metes o monstro das bolachas agora?
- Venerando Narrador Omnisciente, ia falar do Becas que me faz lembrar os Marretas, ou seria a Rua Sésamo? Isso não interessa nada. Apeteceu-me meter o monstro das bolachas.
- Mas isso não está de acordo com a sinopse que nos foi dada.
- Venerando Narrador Omnisciente, não queria ter que o lembrar que nós, Narradores Inconscientes, ainda temos uma certa liberdade criativa. Vem no n.º 3 do artigo 10.º do Código dos Bloguistas.
- Pronto, fantasia lá à vontade!
- Aonde é que eu ia?
- No monstro das bolachas.
- Ah, sim. Isto porque queria falar do Becas, o herói desta história.
- Ai, esta história é de heróis?
- Não é de heróis, é do herói!
- Hum,
- Venerando Narrador Omnisciente, vê algum inconveniente nisso?
- Não, não, continua, que esta conversa já se alonga.
- Muito bem. Becas, o irmão mais novo, era um intelectual sonhador. Morava numa estante de livros e tinha como função afastar os bichos do papel e os ácaros. Era amigo das aranhas e tinha um acordo com elas, deixando-as fazer teias dentro de determinados limites, o que protegia os livros de outros bichos.
- E pronto.
- Desculpa lá, mas que raio de herói é esse?
- Venerando Narrador Omnisciente, é o meu herói!
- Santa paciência…
:p
* Este texto já tem uns anos e foi escrito para um desafio de um blog.
Alice tentava assimilar o facto de Marco ser o namorado que Flor tanto falara. Durante o jantar que fora oferecido aos dois esteve sempre calada. Queria ter uma oportunidade de falar com Marco a sós para averiguar o que é que Flor sabia sobre ele e o seu passado. Mas a oportunidade não surgiu, teria que esperar para depois.
Os dias foram passando até que surgiu, sem ser procurada, a hipótese de falar com o seu amigo. Estavam os dois sozinhos na cozinha enquanto Flor fora buscar um xaile para saírem.
- Marco, diz-me, o que sabe Flor sobre ti? - Indagou em surdina mas mesmo assim fez estremecer o seu interlocutor ao ouvir aquele nome.
- Por favor, já te disse que sou Maurício! Nunca mais me chames esse nome! Não aqui! - Marco deixava transparecer as lembranças que o seu nome lhe traziam.
- Já percebi... ela não sabe nada. Tens que lhe contar se o que sentes por ela é sério!
- Eu sei. Mas não tenho coragem e quero esquecer... esquecer o que que me atormenta. Se eu pudesse.... - Marco tinha o olhar distante
- Se tu pudesses o quê? - Alice adivinhava-lhe os pensamentos
- Se eu pudesse libertaria todos os meus irmãos das mãos do teu pai!- Olhou-a, parecendo que desse olhar saíam punhais! - Desculpa Alice....
- Não. Não peças desculpa... eu também penso nisso... - Disse Alice baixando o olhar - Vamos a tantas reuniões que falam sobre abolição e nada fazemos!!!
Marco ia continuar mas teve de calar-se pois Flor entrava radiosa e sorridente na cozinha.
Aquela pequena conversa plantou uma semente nos pensamentos dos dois. Alice e Marco combinaram um encontro dias depois num dos muitos jardins da cidade. Escolheram para o efeito um mais recolhido. Marco tomou a palavra sem grandes demoras
- Alice tenho que voltar. Tenho que tirar a minha mãe dali e os meus irmãos daquele sofrimento. Eles merecem ser livres! Eu sinto cada chicotada que sei que eles estão a sofrer. - Marco cerrava os dentes após ter terminado a frase
Alice, com o olhar turvo pelas lágrimas que teimavam em existir, assentiu - Também penso neles e na minha culpa por os ter abandonado. A minha presença talvez travasse um pouco a ira do meu pai. Se bem que ultimamente....
- Desculpa Alice, eu sei que aquele homem é teu pai, e só por isso prometo-te que não lhe tocarei. Mas farei o que for necessário para abrir as portas daquela senzala. E já tenho duas pessoas interessadas em ajudar.
Alice arregalou os olhos. Percebeu que Marco havia transformado os pensamentos em ações e um plano começava a surgir. Ela também iria. Conseguiu convencer Marco, após muita discussão, que iria expurgar a sua culpa dessa forma. Teriam, antes de agir, de vigiar atentamente os hábitos dos guardas da senzala. Alice sabia que o pai costumava manter duas pessoas de guarda à noite. Embora um deles deixasse levar-se pelo sono para depois deixar que o companheiro de vigia descansasse por sua vez. Mas estavam os dois juntos, caso fosse necessário algo. A casa dos guardas ficava algo afastada da senzala mas mesmo assim não longe o suficiente para não ouvirem caso fosse dado o alarme. Teriam, pois, que eliminar aqueles guardas. Um dos amigos de Marco iria na frente para se inteirar de tudo e estudar a melhor forma de agir, mais tarde encontrar-se-iam todos para estabelecer a função que cada um teria.
O tempo foi passando e aproximou-se com passo de lebre o dia combinado para a partida de Alice, Marco e o outro amigo deste. Alice estava tão agitada e distante, à mesa de refeição ao jantar, que o seu tio acabou por sobressalta-la com uma questão.
- Recebeste alguma carta da tua mãe? - Alberto olhava-a atento e Beatriz, que notava algo diferente na sobrinha, também a olhou.
Alice estremeceu - Não... não, mas porquê?
- Porque te vejo nervosa e achava que a minha irmã te tinha escrito a contar algo sobre a fazenda que te apoquentasse. - Alberto introduzia um pedaço de feijão à boca, desviando momentaneamente o olhar da sobrinha.
Isso deu a Alice uns pequenos segundos para se recompor. Tinha de forçar-se a acalmar - Ó tio.. sabeis que a minha mãe me preocupa e por vezes penso nela e em como estará.
Alberto pousou os talheres e limpou cuidadosamente os lábios antes de continuar - Minha querida penso que será altura de lhe fazermos uma vista. Há muito tempo que não vamos à fazenda. Tens razão. É injusto para contigo e a tua mãe. Mas infelizmente a enorme distância que nos separa e o meu trabalho não têm deixado que tal visita se proporcione. Mas irei tratar de tudo para que brevemente possamos ir à fazenda. Agora, por favor come este quindim que Anastácia fez que deve estar uma delícia e dá um sorriso - Alberto olhava-a sorridente.
Alice correspondeu ao seu sorriso. Como seria bom que o seu pai fosse assim...
A noite chegou e quando todos dormiam Alice esgueirou-se do seu quarto. Abandonara os seus longos vestidos e trajava como se fosse um homem. Calças pretas e uma camisa escura para se misturar com as cores noturnas. Apanhara o cabelo numa única trança e cobrira uma capa pelas costas com um capuz para ocultar suas feições femininas.
Marco já a esperava no ponto acordado por ambos, com dois cavalos, e o seu amigo, Joel, já montava o terceiro animal. E dali saíram todos a galope. Teriam ainda muito caminho para andar. Antes de libertarem os irmãos negros teriam de se encontrar com o segundo amigo de Marco, o Xavier, que os esperava num casebre abandonado, outrora a casa de alguém, e que ficava bem afastado da fazenda.
As horas naquela noite, e dia seguinte, passaram devagar e os três cavaleiros nada falavam. Engoliam as palavras junto com o medo que algo corresse mal. Chegaram ao casebre já noite alta. Xavier esperava-os alerta. Naquela noite o sono foi premiado com agitação. Tinham de descansar pois esperava-os uma tarefa nada fácil! Quando Alice acordou já os três rapazes estavam a pé e conversavam em surdina fazendo riscos no chão. Aproximou-se e percebeu que falavam do ataque à fazenda do seu pai! O seu coração bateu mais depressa. Tentou sossega-lo e sentou-se junto de Marco e serviu-se do pão que este lhe estendeu.
O plano, apesar de perigoso, não parecia complicado. Além disso, Xavier tinha conseguido avisar uma das negras da fazenda que vira na cidade a carregar mercearia para uma carroça. Os seus irmãos estava à espera! Tinham, pois, que calar os dois guardas à entrada da fazenda, para poderem ter acesso até à senzala. Aí teriam de anular mais dois vigilantes. Tudo teria que ser feito com o maior silêncio possível! Nenhuma arma podia ser disparada para que não fosse dado o alarme! Depois abririam as portas da senzala e, enquanto Joel e Xavier ficariam de vigia à casa dos guardas, Marco e Alice fariam sair todos dali até à orla da fazenda e daí seguiriam para o quilombo mais próximo. Os cavalos já os esperavam no mato, num ponto estratégico, para transportar os mais idosos e crianças. O resto seguiria a pé. A liberdade dar-lhes-ia força! Contavam que na Senzala estivessem cerca de 20 pessoas, crianças incluídas. Não sabiam se iam ter tempo de avisar Dôdo e quem estava na cozinha e isso estava a ser difícil de aceitar. Mas achavam que por um bem maior valeria a pena soltar a maior parte das pessoas. Mais tarde se veria o que fazer com Dodô, Mãe Jurandi e Miká.
Chegou a hora de agir e com ela a apreensão de Alice agravou-se. Nada mais natural. Ela temia sobretudo pela mãe e pelas escravas da cozinha, assim que seu pai percebesse o que havia acontecido. No seu íntimo ela sabia que seria impossível ir buscar a Dôdo. A menos que ela tivesse sido avisada!
Fora fácil derrubar os guardas da entrada. Depois disso, os quatro seguiam numa mescla com a escuridão e em silêncio até à senzala. Aí seria o ponto mais crítico!
Quando o branco das casas se distinguiu na obscuridade, quais felinos prontos a atacar a sua presa, rentes ao chão, avançavam para posicionarem o ataque. Afastaram-se... não viam os guardas! Como é que a senzala estava sem guardas!?!
Alice estremeceu ao sentir-se agarrada pelo pescoço! E tudo se passara muito rápido a partir daí! Alguém lhe segurava os pulsos atrás das costas e lhe impedia qualquer movimento, sentindo o pescoço apertado com um braço musculado não conseguia emitir um pequeno aviso que fosse.
Pelo canto do olho viu que Marco lutava contra dois homens sem sucesso. Foram traídos! Estavam à espera!
O seu corpo frágil e feminino não suportava a força desmesurada que usavam sobre si. Eram arrastados, ela percebia que os levavam até onde estava o tronco da tortura. O que lhes iriam fazer? Onde estaria o seu pai? O que faria quando visse que a sua própria filha estava ali?
No largo estavam já erguidos quatro troncos. Definitivamente foram traídos! Mas quem faria isso?
O seu pai, Paes de Andrade, imponente e arrogante como sempre, ordenou que os obrigassem a ajoelhar no chão. Queria olhar nas suas caras para ver quem tivera a ousadia de o enfrentar. Mas antes mandara ir buscar o "outro".
O outro? Mas quem, se não havia mais ninguém com eles?
Arrastado por dois guardas surgiu Victor! Ele que trabalhava com o seu tio Alberto há anos. Porquê?
O grande senhor de escravos soltou uma gargalhada quando o viu, espancado e desorientado.
- Pensavas que por denunciares os teus compinchas eu te deixava sair daqui sem provar da nossa hospitalidade para com os negros!!?
Fora Victor quem os denunciara e seguira. Mas porquê se dera a tanto trabalho?
Victor não lhe respondeu, estava muito mal tratado. Seguidamente Paes de Andrade dirigiu-se a Xavier, que tentou, infrutiferamente libertar-se das mãos que o empurravam e mantinham no chão. Seguiu-se Joel e Marco. Parou no Marco.
- Conheço-te não é? - E deu-lhe uma valente pancada acertando num ombro com um chicote curto e rígido - Afinal voltaste? Sentias saudades do meu chicote, ora diz lá? - E levanta outra vez a mão desferindo outro golpe que, desta vez, acertara no pescoço e Marco não conseguiu abafar um gemido. - Isso fez Paes de Andrade sorrir de regozijo.
Nisto um grito se fez soar.
- Pára!! Por favor, chega de tanto ódio! - Era a mãe de Alice, Sinhá Amália, que surgia acompanhada de uma Dôdo angustiada e de uma Miká espavorida.
Paes de Andrade virou-se e ordenou.
- Não te aproximes! Não te metas nestes assuntos! - levantou gorda e possante mão num sinal de aviso.
Amália não se deixou intimidar - Não me metes medo! Já não... Se quiseres podes colocar-me no tronco mas não serei mais conivente com isto! Não me calarei mais! Esse rapaz partilhou o leite com a tua filha e ... - Paes de Andrade cortou-lhe a palavra e do nada estava perigosamente próximo dela. Dôdo tentou proteger a sua Sinhá mas foi prontamente afastada pelo patrão, e com tal violência que caiu desamparada no chão! - Amália deixou de olhar para o marido e tentou socorrer a amiga negra, mas um puxão dado no seu braço obrigava-a a levantar e enfrentar os olhos do patrão de escravos. Estava magra, débil, mas notava-se que possuía uma força poderosa, que entretanto, também encontrara a liberdade.
- Queres ir para o tronco sua vadia? Queres ser amiguinha dos negros? Pois serás um deles! Ponham-na no tronco para que comece já aprender a ser uma negra! - Disse virando-se para um dos seus guardas. A uma pequena hesitação deste Paes de Andrade, completamente enlouquecido, parte para cima dele e dá-lha novamente a ordem em tom ameaçador - Já!!
Alice que até então perdera a voz recupera o controle do seu corpo e grita com todas as forças
- Não!!!
Todos os olhares se viraram para ela! Ninguém percebera que era uma mulher que ali estava! Além da capa, com o devido capuz, prendera cuidadosamente o cabelo debaixo de um masculino chapéu de abas. Nada a denunciava.
A surpresa fora tal que os guardas que os agarravam relaxaram na sua força o que permitiu ao Joel, o mais forte de todos, libertar-se do seu carcereiro e tirar-lhe a arma. A partir daí gerou-se uma grande confusão de braços, murros, socos e pontapés. Mas tudo cessa quando se ouve o som de um tiro. Alice que também se libertara vê o seu pai apontar uma arma para Marco e ato contínuo coloca-se à sua frente amparando o tiro! Que, certeiro, a atinge no peito.
Ela cai e Marco consegue, aproveitando a surpresa de todos, amparar-lhe a queda. Afasta-lhe frenétricamente as roupas para ver o que pode fazer, mas nada pode ser feito, o sangue perde-se na alvura daquela pele branca...
Paes de Andrade que ficara estático fora desarmado. Levantou os olhos e com estes, raiados de sangue e ódio, viu que um negro lhe apontava a arma. Um negro da sua senzala! Mas como??!!
O homem, alto, musculado, e de voz forte saciou-lhe as perguntas que não foram feitas - Chegou a nossa hora! Chegou a hora de mandarmos! Queres saber quem nos libertou? - mas não esperou pela resposta e continuou - Miká conseguiu a chave na confusão e deu a liberdade aos seus irmãos! Liberdade que a sua filha nos ia dar! A filha que você, seu diabo, matou!
Paes de Andrade respondeu inchando o peito, nunca perdendo a pose - Nunca! Nunca serão livres! Eu paguei por cada um de vós! Pertencem-me posso fazer-lhes o que eu quiser! - parecia não querer ver que estava a ser rodeado pelos negros mais fortes. Todos os seus guardas haviam sido derrubados e alguém, entretanto, os fechara na senzala. Só restava ali ele para satisfazer a sede de justiça daquela gente.
Um dos negros grita.
- PARA O TRONCO!! - e todos respondem a uma só voz
- PARA O TRONCO COM O PATRÃO DE ESCRAVOS!
Alice já não tinha forças para resistir ao peso dos seus olhos. Não sentia dor, apenas cansaço. A mãe, alheia a tudo o resto, aproximara-se dela e ajoelhada no chão beijava-lhe a face.
- Minha menina, não me deixes! Resiste! - rogava Amélia.
Marco apertava Alice nos braços, ela tentou falar - Marco protege-a... - tentou articular mais uma palavra mas as suas forças abandonaram-na. O seu olhar, preso no de Marco, disse o que os lábios calaram.
Amália soltou um grito. Dôdo, que se encontrava ao lado, chorava copiosamente a morte da sua menina. Marco levantou-se, segurando Alice no colo, e abalando dali. Amélia deixava o marido entregue à sua sorte. Nunca lhe perdoaria!
Xavier e Joel seguiram Marco e aconselharam-no a que saíssem o mais rápido da fazenda. Foi aprontada uma carroça. Que levaria Marco, Sinhá Amália e o corpo de Alice, os restantes seguiriam a pé. Iriam buscar os cavalos e sairiam daquela fazenda onde o ódio e a raiva consumiam qualquer alma.
Amália afagava a filha, como se a vida ainda estivesse ali. Como se ela sentisse aquele afago. Não olhara uma única vez para trás. Paes de Andrade morreria espancado, naquela noite, às mãos dos negros que ele torturara.
Souberam, mais tarde, que Victor os havia denunciado por ciúmes de Marco e Flor.
Fim.
Finalmente.... Agora é a vez da Cris ou do Corvo. Por mim, prometo que tentarei para uma próxima ser mais sucinta nos meus contos!!!
Peço desculpa a quem tem vindo a seguir a história, que sei que só são três ou quatro pessoas, mas importantes para mim, pela minha demora em continuar a história.
Nos dias que se seguiram aquela reunião abolicionista, e que ficou a conhecer Maurício, as noite de sono de Alice eram muito agitas. Ela tinha que saber se Maurício era quem ela desconfiava. O irmão negro que ela perdera anos atrás.
Começou, sempre acompanhada por Flor, por aparecer algumas vezes no consultório do tio, com a desculpa, para não levantar suspeitas, por levar um bolo, ou um lanchinho para ele, já que trabalhava tanto... Sempre que encontrava Maurício este aparentava um certo nervosismo. Cumprimentava-a sempre distante e formal, mas ela via em seu olhar aquilo que ele tão cuidadosamente tentava calar.
Um dia, num final de tarde, encheu-se de coragem e saiu de casa sozinha! Algo não muito visto naquela época. Mas ela tinha que saber! E para isso tinha de sair só. Vestiu uma roupas simples, que tinha tirado do armário de Flor, e envolveu-se numa capa preta, tento o cuidado de cobrir a cabeça com o capuz da mesma. Ninguém iria reconhecê-la.
Aguardou, escondida, que Maurício saísse do consultório do tio, e, imprudentemente, segui-o. Ele ia se afastando da cidade e ela também...
Alice, depois de muito andar, começava a achar que aquilo não fora boa ideia, mas já que tinha ido até ali, continuaria. Estavam agora perto de um conjunto de casas simples de madeira, todas seguidas e pobremente cosntruídas. Quando Maurício abrandara o passo... Alice já não tinha a proteção de edifícios para se esconder, estavam praticamente em campo aberto. Ele sabia que era seguido. Mas que interessava? Era para falar com ele que se dera a este trabalho.
Já junto dele viu fixá-la nos olhos.
- Menina Alice não devia estar aqui sozinha! Principalmente a estas horas! Venha, vou acompanhá-la a casa. - o jovem estava hirto, e transparecia alguma apreensão
- Não. Não vou enquanto não me disseres a verdade. És o meu Marco, não és? - Alice fora directa ao assunto, como seu costume, e cruzou os braços qual menina a fazer uma birra.
- Desculpe?! Não sei do que fala - Respondeu numa voz trémula - O meu nome é Maurício sabe-o bem. Não conheço nenhum Marco!
-Alice leva a sua mão ao braço dele e aperta-o, força-o a olhá-la, uma vez que ele evitava-lhe o olhar - Eu sei que tens medo. Mas eu sou a tua amiga, a tua irmã de leite! Nunca te denunciaria.Preferia morrer!
- E eu preferiria morrer no seu lugar! - Dito isto, uma lágrima solta-se daqueles negros olhos e rebola por uma face com músculos contraídos.
Alice não precisou de mais nenhuma confirmação! Atirou-se nos braços do "seu Marco" e os dois liberaram anos de angústia por um destino que os separou prematuramente.
Marco segurou-a pelos ombros e afasto-a de si.
- Alice, por favor, serei sempre o Maurício, ouviste? - Estava sério e os seus olhos estavam vermelhos de chorar.
- Não te preocupes meu amigo. Nunca te poria em perigo - Disse limpando a face com as costas da mão.
- Agora vamos. Eu acompanho-te antes que alguém dê pela tua falta ou anoiteça.- Arranjarei maneira de te contar tudo, mas não nestas ruas. Aqui até as pedras da calçada têm ouvidos! Por isso, não me faças perguntas. Não agora.
Alice concordou. O mais importante do que precisava saber já o sabia. Marco não estava mais perdido para ela.
Dias depois, Marco conseguiu esgueirar-se do consultório do Tio Alberto, e sob o pretexto de buscar um livro ao escritório da casa do mesmo, conseguiu finalmente o encontro esclarecedor com Alice.
Ele e o seu pai, Justino, tinham fugido para um quilombo no meio do mato. Tinham sido bem recebidos mas o seu pai não se dera bem. Começou com febres que tanto vinham como iam. Começaram a achar que era por estar ali, fechado e rodeado de mato por todo o lado. Numa de suas melhorias resolveram, ele e mais três negros, aventurar-se até uma cidade maior. Sabiam que se preparava uma revolução e queriam estar à frente dela. A viagem foi horrível para o seu pai, já que estava fraco, e ele piorou. Conseguiram chegar à cidade mas o seu estado já não lhe permitiu aguentar muito tempo. Pouco depois faleceu.
Marco como que fora adoptado por dias negras vendedoras de legumes, que o ajudavam. Conseguiu emprego como carregador, varredor, enfim, fez de tudo um pouco. Mas o seu porte elegante, e o facto de saber ler, conseguiram o emprego junto do seu Tio Alberto, por pura sorte! Quando este foi visitar uma doente nas casas de madeira. O seu tio fazia serviço gratuito imensas vezes, e conheceu uma criança que acompanhava a mãe na venda de legumes, cuja respiração não lhe agradava, a partir daí começou a consultar a menina cujo estado casa vez inspirava mais cuidados. Essa era a casa de uma das mães adoptivas de Marco. Este vendo o tio de Alice atrapalhado com o trabalho, e como forma de pagamento, ofereceu-se para ajudá-lo e daí até à oferta de emprego foi um instante.
Alice também lhe falara sobre a sua mãe, a Dôdo, e contara como o pai dela se tornara o pior fazendeiro para os escravos.
O tempo foi passando, Alice e Maurício tinham cuidado para nunca serem vistos a conversar, muitas vezes encontravam-se nas reuniões, cada vez mais fervorosas sobre abolição e ocasionalmente o tio Alberto convidava-o para beber um licor no fim das mesmas.
Mas nada fazia esperar a notícia que espantou Alice. Flor andava feliz desde há uns dias e já todos sabiam que ela o motivo seria um jovem e não tardou até que a mãe dela, a cozinheira Anastácia , o quisesse conhecer. Beatriz oferecera-se para que o jantar fosse em sua casa. Afinal Flor era a melhor amiga da sobrinha e todos gostavam da jovem negra despachada e alegre.
Quando Flor o acompanhou até à sala Alice nem queria acreditar no que seus olhos viam. Era Marco, ou Maurício, que estava às sua frente!!!
Será que Flor sabia a verdade?
Meus incautos leitores, que um dia vos lembrastes de ler o que eu escrevo, já sabeis que não consigo abreviar histórias. Por isso, lamento, mas
Aonde é que íamos? Ah, sim. Bitaites combinou seguir a sua amiga Guilhermina a ver se percebia o seu apetite repentino por delícias de chocolate às segundas, quartas e sextas. E, durante uma semana de trabalho, foi seguida e observada. No fim, Bitaites analisou os dados que havia apontado e descobriu o mistério. Telefonou a Guilhermina e foram comer um gelado à Spirito.
- Guigui, já descobri tudo!
- Então, Bitas, conta lá o que descobriste.
- É simples: às segundas, quartas e sextas passa um pai com a filha pela mão, levando-a à escola. Isso traz-te memórias do teu próprio pai e, por causa dessa emoção, sentes compulsão para comeres algo doce.
- Mas como é que chegaste a essa conclusão?
- Lembrei-me de um livro que me descreveram há pouco tempo e que ando a tentar arranjar. Chama-se "Overcoming Overeating: How to Break the Diet/Binge Cycle and Live a Healthier, More Satisfying Life", de Jane R. Hirschmann e Carol H. Munter, e fala da influência das emoções quando comemos. Agora que sabes a razão da tua compulsão, ser-te-á mais fácil conseguires controlá-la.
Fim
Nota da autora: o açucar cria habituação, pelo que também é necessário ter isso em conta. Não esperavam por este final pois não? Eu sou mazinha!
Guilhermina (sim, esse é o nome da nossa heroína) começou a dissecar a sua rotina diária, à procura de uma resposta para o seu dilema. Mas não conseguia descortinar o que estava por trás da sua compulsão para a delícia de chocolate só em determinados dias. Em conversa com o seu amigo Bitaites (cujo verdadeiro nome era Etelvino), ao descrever a génese do seu problema, ouviu a seguinte sugestão (bitaite, portanto):
- Se fazes a mesma coisa todas as manhãs, o busílis da questão deve estar no percurso de casa ao trabalho. E tenho uma ideia...
E Guilhermina combinou que o seu amigo Bitaites haveria de a seguir, para observar o que se passava no trajecto de casa ao trabalho.